
Psicanálise: "bobagem" ou ciência?
Em primeiro lugar um agradecimento caloroso a três mulheres brilhantes, Natalia Pasternak, Rosana Richtmam e Margareth Dalcomo. Foram luz, guia, acalento em dias sombrios de Covid. Mas...
O livro "Que bobagem" de Natalia Pasternak e Carlos Orsi aparece num contexto histórico curioso: de um lado uma entrevista preciosa e humilde com o neurologista Dr. Miguel Nicolelis na Folha sobre como caminha o saber sobre o cérebro, de outro, dois artigos fúteis "Psicanálise é ciência?". E enfim o livro de Dráuzio Varela "A Prática da Incerteza". Dois exemplos da humildade do cientista, ou da clínica.
Aí vem a fúria de "Que bobagem", a prática da certeza, da ditadura do saber!
Do livro me restrinjo à "minha cozinha" (A. Souza), à psicanálise.
Ao ler o texto de "Que bobagem" sobre psicanálise, fui transportado lá para os idos de 1895. Foi quando Freud se viu censurado pelos colegas neurologistas, ele abandonava a "ciência" para cuidar de sua descoberta. A certeza da episteme conquistada o fortaleceu na continuidade de suas pesquisas. Não se incomodou com o cientificismo da ideologia positivista no auge, naquela época. Impressionante, mas "Que bobagem" se apresenta como se estivesse inserido naqueles tempos.
Ao ler o texto sobre a psicanálise, vieram também à minha memória duas lembranças da literatura clássica: "O Grande Inquisidor", de Dostoievski e "Dom Quixote', de Cervantes. Essas duas evocações cobrem bem o fanatismo e a aventura imaginária e paranoide do capítulo em pauta.
A cardeal desceu ao calabouço da catedral do cientificismo. Lá estavam as doze prisioneiras, entre elas a psicanálise, que os guardas da Grande Inquisidora trancaram. Sempre com seu escudeiro a tiracolo, no semi-fosco do ambiente assombrado, ele com a lanterna do celular iluminando o rosto crispado dela: "São vocês? Por que vocês vieram nos atrapalhar ?" "Vocês sabem que eu tenho o poder de as enviar à fogueira!". "Por que vieram nos atrapalhar?". "Amanhã mandarei preparar doze fogueiras e eu as queimarei..."
Dom Quixote e seu escudeiro Sancho Pança diante dos moinhos de vento: "... mais desaforados gigantes com quem penso fazer batalha...". E não acatando o bom senso de Sancho: "Dando uma lançada... fez a lança em pedaços" (Cap. VIII).
Quando o ser humano é dominado por uma ideologia, ele deixa de ser livre. "Quando o dirigente é dominado pela ideologia, as pessoas morrem".
Lacan afirma que, no imaginário, as paixões do ser são o amor, o ódio e a ignorância. Incrível: a ignorância é uma paixão. La Boéthie, em 1574, descreve com lucidez o mistério por que o ser humano ama a tirania e se submete ao tirano como escravo: "Servidão Voluntária".
O "bolçalnarismo" parte da perversão, do negacionismo e "chega" à terra calcinada, à terra plana, ao genocídio e à destruição da fauna e da flora, à fome, e o cientificismo parte de uma única episteme e chega a um mundo quadrado, ao enquadramento do universo. Um mundo frio, sem vida, ou vida microbiana apenas, e sem poesia! Um mundo acanhado, sem horizontes, e, sobretudo, sem ternura! Psicopatologia idêntica em ambos os casos: paranoia, neurose obsessiva, fanatismo, dogma, religião...
Pasternak não leva em conta que as epistemes são múltiplas e se constituem de vários modos ou metodologias. Assim, em 1910, a linguística se tornou ciência da linguagem graças ao "Cours de Linguistique Générale" de Ferdinand de Saussure. E Lacan lhe deu avanço substancial. "Uma episteme tão simples e tão evidente: o fal'ente, a língua, a fala, o signo, arbitrário, o ponto de vista, valor, diacronia e sincronia"...
Paralelamente, em 1895, um neurologista genial descobre os segredos da mente humana, como funciona o cérebro na constituição do sujeito humano: o inconsciente, o "cerne de nosso ser". Uma episteme alumbrante!
Ambas: ciências do real, sem uso de microscópio, sem estatística, sem experimento, sem matemática... Apenas a singeleza da nova verdade, sem o espalhafato da visibilidade ou do exibicionismo.
Uma leitura de Gaston Bachelard poderia abrir-lhe horizontes a seu obstinado fechamento de pensamento: "ruptura epistemológica", "corte epistemológico", "obstáculo epistemológico", "vetor epistemológico": "racional para o real e o real para o racional". Ou talvez nem tanto: bastaria uma visita a Fernando Pessoa, "que é este intervalo que há entre mim e mim?", o "Desassossego" ou simplesmente "A Etiqueta" e mais ainda, "A verdade à meia porta" de Carlos Drummond. O fal'ente é um ser de fala: "se o homem fala é porque a linguagem o fez homem" (Heidegger!).
Ao Mérito
O escrito sobre psicanálise é muito infeliz senão leviano. Não fosse delirante, seria inverídico e eticamente desonesto. Pasternak, no alto de sua visão única de ciência, se viu dominada pelo delírio do saber. Lacan tinha razão: o "saber é da ordem da paranoia"...
Primeiro, certamente os Estados Unidos não são boa companhia respeitante à psicanálise. É o país que mais deturpou a descoberta freudiana. Dois exemplos claros: W. Reich e a "Ego Psychology" (R. Loewenstein).
Pasternak parte de vários pressupostos falsos, e isso é estranho em se tratando de uma "cientista".
Mistura psicanálise com psicoterapia ou "terapias psicodinâmicas". Equívoco grosseiro. A psicanálise é análise, análise das manifestações da psiché.
É uma prática clínica específica que tem como objetivo acolher o sofrimento humano venha de onde vier. Todas as psicoterapias têm como objetivo "a utópica retificação da relação egoica" (Lacan), imaginária ou visam o comportamento. A psicanálise é uma prática clínica voltada para o real. O real da estrutura que afeta o sujeito.
Não é honesto criticar a psicanálise a partir de preconceitos e lugares comuns, até folclóricos. É impostura partir de um bunker epistêmico, sair atirando em assombrações para todos os lados e desfazer outras epistemes que têm outros modelos para buscar a verdade e fazer ciência. Uma episteme visa a objetivação, a da psicanálise visa a desobjetivação do imaginário, da relação narcísea, paixão da mente hodierna, uma episteme visa o universal e a da psicanálise visa o particular, o singular ou, precisamente, o sujeito. O Uno (tão precioso para os pré-socráticos) ou mesmo o único, melhor ainda o "uniano", ("haí Um", "y a de l'Un") (Lacan).
Pasternak insiste em pesar feijão com metro e medir terreno com quilogramas. Imaginem que até placebo sugere para controlar o efeito da cura em psicanálise. Sua paixão ou paranoia faz da metodologia do cientificismo um fim, não um meio. Pior, no capítulo inteiro sequer uma vez aparece que o objetivo da ciência, e o da psicanálise por essência, é a procura da verdade, sempre uma e não a Verdade. Essa subserviência gera cegueira. Não há experimento possível com o sujeito. Não há repetibilidade. Não há outra Natalia Pasternak, é a única no mundo. E não houve nem haverá outra. Mesmo do ponto de vista da biologia, e ela sabe disso. Mas, sobretudo do ponto de vista da psicanálise, essa é uma verdade fechada com que lidamos. "Cada ser humano é um mistério" (Lacan) e nós, psicanalistas, nos despojamos de nosso saber e "das miragens de nosso ego" (Lacan) para a solenidade desse encontro fantástico: quero saber que verdades desse paciente que acolho, fazem dele um sujeito. Ou quê o impede de ser sujeito de seu desejo, quê o impede de sublimar suas pulsões, quê o impede de ser feliz: Qual é "sua dor de existir"? (F. Pessoa).
E isso só é possível se nos ativermos estrita e rigorosamente à sua facticidade. Pasternak faz uma verdadeira mixórdia de terapias e abunda em julgamento de valor e multiplicação de adjetivos.
Afirma disparates assustadores: mistura análise, interpretação analítica com hepatoscopia, interpretação com áugures, interpretação com adivinhação, interpretação com fenomenologia, interpretação com "sinais fantasmagóricos", ou "método hermenêutico", interpretação com insight. Ou interpretação com o estado de alma ou o ponto de vista ou humor ou a filosofia do analista..., interpretação com "calabouço" da cabeça da psicanalista, interpretação com "acusação" ."Dependendo do ponto de vista do analista, pacientes de cada escola tendem a trazer à torna exatamente o tipo de dado fenomenológico que confirma as teorias e interpretações de seu analista. Cada teoria tende a se autoavaliar" (sic!). Realmente Pasternak não se deu ao trabalho de veri-ficar o que é a psicanálise! Temos aí o mais puro "tigre de papel", mistifório conceitual.
Interpretação em psicanálise é uma prática difícil, mas precisa, supõe neutralidade e abstenção total do/a analista e aderência íntegra às manifestações do inconsciente, fidelidade e respeito à narrativa e ligação estrita ao histórico do paciente. A interpretação só é válida e efetiva e lícita se ela resulta do algoritmo do significante. Se algo do saber ou do imaginário da/o psicanalista se precipita não é interpretação. Estamos fora da prática psicanalítica.
Freud
Trata-se de episteme, de saber, de ciência. Muito ruim o uso da palavra "doutrina". Ato falho? Em todo caso, psicanálise é um projeto das Luzes, é a busca incansável da verdade: "Wo Es war, sol Ich werden", "onde era Id, eu devo advir" (Freud). Trata-se de um "dever", a busca da verdade do inconsciente, é um dever moral (soll) no processo analítico. Verdade... do sujeito. Nada de "doutrina". "O sujeito se constitui na procura da verdade" (Lacan).
Pasternak, infelizmente não vai à fonte, nem mesmo ao monumental antropológico capítulo VII da "Interpretação dos Sonhos". Respiga algumas noções vagas, tudo de segunda ou terceira mão: "repressão", "supressão" (por que continua a incomodar?!), "inconsciente psicodinâmico" (quê é isso? Tautologia?), jargões e em seguida o despautério de desfazer da "experiência clínica": "fraudes", "fabricações" e "distorções". E a autora sempre a buscar apoio em autores de segunda ou terceira mão que pensam como ela ou simplesmente desconhecem a psicanálise.
Pasternak contrai uma responsabilidade grave na história das ciências destratando Freud de maneira arrogante e acintosa: "contador de histórias", "falsificações", "fracassos", "fraudes", "conveniência do momento"... "não só inútil como desonesto"...
Ela cita a frase que teria sido do Homem dos lobos: "Na verdade, a coisa toda foi um desastre". "Estou no mesmo estado de quando conheci Freud e Freud não está mais vivo", como argumento contra a psicanálise. Como não leu Freud não viu que ele avisou que psicanálise não é vacina. E, como ignora o que é clínica, estranha que haja reincidência na cura das doenças. Daí concluir no julgamento moral de "as falsificações e os fracassos de um Freud" é de uma primariedade infantil. Mal sabe ela que a maior garantia da cura de um psicótico em psicanálise é que ele tenha de duas a três recaídas após a cura.
Ainda bem que Pasternak colocou aviso na entrada de seu livro: "[...] outros absurdos que não merecem ser levados a sério"... Seu inconsciente avisando os leitores de suas colocações?
"Fraude"? Consulte Gøtzsche P. C. "Medicamentos mortais e crime organizado". Se não tiver fôlego para tanto, leia a nota-denúncia, Folha 04/09/23, de Bruno Gualano sobre as falcatruas da "ciência" e conclua se "Bobagem" consegue ficar isenta: "Corra, cientista! Os zumbis estão à solta... Estudos com graves falhas ameaçam a credibilidade da ciência".
Freud deu um passo epistêmico no conhecimento do ser humano, tão grande quanto a descoberta do heliocentrismo por Copérnico. Mas para Pasternak: mera "Disneylândia discursiva" ou apenas "algodão doce dos sofistas".
"Kern unseres Wesen", sim! "o cerne de nosso ser". O inconsciente da autora disse a verdade: "o homem bomba", ele descobriu o centro do homem, destituiu o "homo rationalis" e "demonstrou" essa verdade. Pasternak repertoria alguns conceitos da psicanálise: "transferência" que ela interpreta como "dependência infantil, submissão aos terapeutas", "repressão" que ela acha que é diferente de "supressão", "resistência" que ela continua achando que é do paciente, e menciona "pulsão de morte" e "retorno do reprimido", que ela entende como "lugares comuns", e "fenômenos sociais". Tudo no entorno, na imaginação, ou no folclórico, fugindo do núcleo: distante da verdade.
O inconsciente
"O inconsciente, afinal" é o escracho: "quimera", "quimera do reprimido". "A psicologia científica" e a neurociência não! Elas sim sabem o que é o inconsciente? "O inconsciente psicanalítico é fantasmagórico, é apenas metáfora do científico". E cada vez apela a um autor que nada tem a ver com a episteme psicanalítica para confirmar seus pré-conceitos e juízos de valor. Ela mesma se trai, puro "jogo retórico", nada fundamentado na descoberta do inconsciente freudiano. Cita que Leibnitz teria sido o descobridor do inconsciente. Então temos três inconscientes, o "científico", o de Leibnitz e o terceiro, daquele que ela desconhece, aquele que descobriu como o interpretar, como entender suas manifestações, inconsciente que para ela é "quimera". Este sim quimera: "depende" do ponto de vista do analista... "jogo vazio"... "regras arbitrárias"... "pátina de plausabilidade"... "conclusões ilusórias"... "vaidade intelectual de uns"... "causam dano grave à vida e à psiqué de tantos outros". Por que essa fúria quixotesca contra o inconsciente freudiano que demonstra ignorar redondamente? Pasternak tem um fim muito claro em seu escrito: ela visa o método, o modelo do catecismo cientificista, e não a verdade, ou a descoberta dela. É briga com o moinho. Ora, o inconsciente a leva ao desespero, porque é uno, não dá repetibilidade, não cabe sob microscópio.
Assim reza e prega a orácula do cientificismo! Note-se, não há a mínima preocupação com a verdade, aliás, esta palavra não existe nessa cruzada agressiva. Nem uma vez sequer no capítulo em pauta. Verdade fica na poeira da estrada, o que interessa é apenas a liturgia positivista. Ela pensa que zombando do inconsciente freudiano ou desfazendo dele, ele deixa de existir.
"As sepulturas além de toda motivação que lhe possamos sonhar, são edifícios que a natureza não conhece" (Lacan). O inconsciente nos pega sempre no contrapé. Pasternak abriu uma cova comum e lá enterrou doze cadáveres..., mas não se deu conta, enterrou também o dela. E sobre a lápide o epitáfio: "Bobagem".
A verdade está lá, serena no ninho dela. Não precisa de alvoroço ou ideologia ou agressividade para a descobrir. Essa luta de prestígio (Hegel) ou inveja fraterna acadêmicas é uma estupidez infantil perfeitamente dispensável. A verdade é. A verdade está lá.
E a esta altura, ao me despedir de Dueña Natalia y suo escudero Orsi, me invade a lembrança de uma lenda: "o pintor Apeles expunha quadro seu na ágora de Atenas. Aproximou-se dele um sapateiro: - Esse, quadro não presta porque a sandália está mal desenhada. Apeles, serenamente: Sutor, ne ultra crepidam: sapateiro, não vá além da sandália". Ah Natalia, tivesse você lido os três poemas de Fernando Pessoa sobre o Inconsciente, você teria tido chance de entender o Inconsciente freudiano. Desista Natalia!! As belezas da alma e suas mazelas, o microscópio não capta. Elas se passam no simbólico.
Mas Pasternak nos avisou a que vinha já na primeira página de seu "Bobagem" com enorme ponto de exclamação do tamanho da bobagem: "Dizer-se "científico" é reivindicar atenção, prestígio, um espaço privilegiado na mídia e no olhar do poder público". E, mesmo com científico entre aspas, ela conseguiu essa visibilidade tão cara aos que habitam a pós-verdade e dela gozam. Mas a que preço!
À episteme
"A psicanálise não é o discurso científico que fala dela" (François Perrier). Sim, a psicanálise é uma experiência. Impossivelmente um experimento. Uma experiência: só quem por ela passa, sabe o que é a psicanálise. A experiência do inconsciente é própria, singular, disruptiva, subjetiva. Intransmissível – Pasternak desfaz da "experiência clínica", a crava "falácia". Age bem. Primeiro, porque ela não sabe o que é, não lida com paciente e muito menos com seu sofrimento. Ela conhece apenas a "clínica" do microscópio. Segundo, ignora a diferença entre o saber médico, o saber psicanalítico, o Know how, e a clínica médica, a clínica psicanalítica. Um é saber, é protocolo e a outra é sabedoria: a florada, o gozo da prática, ela ignora o que aconteceu também com a psicanálise. "O mais corruptor dos confortos é o conforto intelectual, como a pior corrupção é aquela do melhor" (Lacan).
Psicanálise
A psicanálise não é uma Weltschaung. Longe disto, ela exclui qualquer ideologia ou "visão de mundo".
O ser humano tem seu destino marcado, mesmo antes de os pais se conhecerem. A sorte, ou a comédia, ou o drama ou a tragédia é nascer de tal mãe e de tal pai (M. Mannoni). A psicanálise se estrutura sobre duas pilastras: édipo e castração.
A energia, pulsão (Freud) do ser humano não é instinto. É uma força neutra, sem pré-determinação. São os pais que a "moldam", a "aviam". Aqui o Nome-do-Pai é o grande operador que presidirá o encaminhamento da pulsão para a ordem da civilização, para a norma, para a lei. A Lei dá consistência à ordenação da pulsão. Ela preside as vinte e quatro horas do existir.
E tudo está feito aos cinco (Lacan) ou aos seis (Freud) primeiros anos da existência. O resto seguirá esse alicerce. Inclusive, a identidade sexual. O resto é adorno senão sequelas.
Fal'ente, sua estrutura psíquica é a língua, precisamente a linguagem. A linguagem sempre precede o ser humano. O ser humano divide-se de si mesmo porque vive no simbólico. Por esse destino radical deixa a ordem da natureza para se alçar à ordem da cultura. Sua energia tem um fim estrutural: sublimar. Transformá-la, única no mundo, em civilização: o outro, a ciência, a arte, a literatura, a filosofia, a música, a fé... Preservá-la nesse encaminhamento constante é um dever moral, é uma ética que constrói mundo, é transformá-la em obra de civilização e fraternidade universal. Sublimar é renúncia. A pulsão não pode ficar solta. Vira um desastre. É uma desorientação generalizada. Para a encaminhar é preciso renunciar ao gozo dela, não renúncia por renúncia, mas "estética da renúncia", como testemunha Fernando Pessoa. "O gozo faz o Outro inconsistente" (Lacan). E sem o operador Outro a pulsão atola. O gozo não produz, é apenas gozo.
Lacan deu a definição mais perfeita do ser humano: "falta-para-ser". O filhote humano é o mais frágil dos seres viventes. Freud fala em Hilflosigkeit, desamparo, derrelição. Em tudo depende da mãe, do pai desde seu nascedouro. Em sua existência por mais que faça ou realize sempre estará na estrutura da "falta-para-ser". Mesmo porque é um ser-para-a-morte. Essa definição, quando vivida convictamente, é de extremo valor para o contínuo encaminhamento da pulsão e para a subjetividade.
Psicanalista é aquele ou aquela que se impregnou de tal maneira desse princípio, que o vive ininterruptamente. "É uma ascese", propõe Lacan. Nunca está pronto. É um despojamento contínuo, por princípio, em virtude da função. É uma subjetivação na morte. Caso contrário a escuta analítica não atingiria seu fim. "A maior riqueza do homem é sua incompletude. Nesse ponto sou abastado" (Manuel de Barros).
Renúncia ao gozo, ao gozo imediato e pulsão concentrada, focada na produção da obra. É a obra que conta, a obra que realiza. Freud chama castração a renúncia. Lacan crava: "Aquilo de que a experiência analítica é testemunha é que a castração é em todo caso o que regra o desejo do normal e do anormal"... "em todo caso"!
Sublimar é destino visceralmente humano. "Quanto mais alto o homem de mais coisa ele tem de se privar" (F. Pessoa). Todas as conquistas da civilização são frutos da sublimação. Porém, como é energia moldável, corre o risco de se incinerar na perversidade, no ódio, no vício, (a-viciado) no amor próprio, no narcisismo, na crueldade, no crime... Tristemente, dolorosamente: as cruzadas, os anátemas, os dogmas, a Inquisição, a escravidão, os campos de concentração, a bomba atômica, as torres gêmeas, setecentos mil mortos... Em tudo isso, o outro excluído. "Destino funesto", existência sem horizonte!
Pasternak chega a estranhar que um "não" possa ocultar um "sim". Quando Bolsonaro afirmou "não sou coveiro" ele vivia a má consciência de que era coveiro de retroescavadeira com quatro mil mortos por dia. Coveiro de setecentos mil brasileiros. "Não" de um "sim" de dolorosa e cruel tragédia! "Sim" sinistro, banalização da vida, escárnio da solidariedade humana.
Enquanto a vida segue, um duplo registro vai preenchendo o arquivo de nosso cérebro: uma memória consciente e outro, a memória inconsciente. O primeiro por ser imaginário é de gravação passageira, pois facilmente é substituído por outra impressão. Mas é nesse registro que a linguagem vai coligindo etiquetas, carimbos, "cascas" (Lacan), que levam o sujeito a se trocar por eles e a viver alienado de si mesmo: "não posso", "não consigo", "detesto", "não suporto", "tenho medo", "não gosto"... o narcisismo malsão, doentio, Instagram disparado... as selfies sem fim. "Só a psicanálise reconhece esse nó de servidão imaginária que o amor deve sempre redesfazer ou cortar" (Écrits, p. 100. Lacan).
O segundo registro é o registro do inconsciente: "o inconsciente não deixa nenhuma de nossas ações fora de seu campo"... "Todo discurso toma seus efeitos do inconsciente" (Écrits, p. 827, Lacan). De todos objetos externos, um "objeto", lasca, resto, restolho deles vai sendo gravado no inconsciente. Lacan os denomina objetos-a (álgebra: a de autre, outro do objeto externo). É daí sua fórmula preciosa para a ciência e a clínica da psicanálise: $◊ a: sujeito da fala, barrado de si mesmo, no simbólico, unido ou separado de seus objetos-a, isto é, o real, a verdade do sujeito. Fórmula, matema da verdade do sujeito.
Lacan é claro: "nenhuma de nossas ações". O problema é que esse registro é inconsciente. É o próprio inconsciente. "É o próprio psíquico" (Freud). Ou seja, num processo que Freud chama primário, não sabemos nem o que é registrado e muito menos como é registrado.
Esse registro é ainda um mistério neurológico: um estímulo linguístico através de um processo eletrobioquímico produz uma engramação em células cerebrais e essa memória é inextinguível, "uma memória que não esquece" (Freud).
Essa engramação é descrita por Freud como "camadas" e por Lacan como cadeias de significantes. No inconsciente tudo é simultâneo como na física quântica. O inconsciente registra a existência toda, mas ele mesmo não tem tempo. O inconsciente além de não ter tempo, não tem ética, nem moral. O que ele grava nos escapa, só conhecemos o que ele nos devolve. Nessa diacronia sincrônica ele aparece na consciência numa manifestação-surpresa, às vezes dolorosa, outras chocantes, outras violentas.
Nele se aninham também núcleos patógenos que nos fazem sofrer. Movido por um "estímulo anódino da véspera", esse arquivo se manifesta expondo verdade do sujeito. Ele escolhe os caminhos da manifestação: por excelência, o sonho ("válvula de escape", Freud), o ato falho, o chiste, a negação, a denegação, o esquecimento, a falha no discurso, o sintoma, a angústia, a ansiedade, a ansiosidade, o pânico... "é a incidência da verdade como causa do sintoma" (Lacan)... "A evidência vai ser subvertida, aí está a virada da conversão freudiana"... "Penso onde não estou, portanto eu sou onde não penso"... "Eu não estou lá onde sou o joguete de meu pensamento, eu penso naquilo que sou lá onde não penso pensar" (Lacan).
Essas manifestações às vezes escancaram a verdade, outras aparecem em forma de "enigma", dizia Freud, e Lacan, precisamente, descobriu que elas se tecem em forma de significantes. Nem signo, nem significado, nem significação, nem referente. Mas o inconsciente é pura linguagem: "o inconsciente sonha, falha e ri" (Lacan). Freud realmente descobriu que o inconsciente é por excelência o lugar de fala. "Fala-se, e lá sem dúvida onde menos se esperava lá onde se sofre" (Lacan). O retorno do recalcado (manifestações) é não raro muito chocante. O inconsciente é genial em driblar a censura e a apresentar disfarçada, em roupagem aceitável. "O que ensinamos o sujeito a reconhecer como seu inconsciente é sua história – ou seja, nós o ajudamos a perfazer a historização atual dos fatos que já determinaram em sua existência certo número de reviravoltas históricas. Mas se elas tiveram esse papel, já foi como fatos históricos, isto é, como reconhecidos em certo sentido ou censurados numa certa ordem".
Pausa: Uma homenagem e gratidão a Fernando Pessoa pela precisão e pela beleza de seus três poemas sobre o "império" do inconsciente, o âmago do ser humano, e o reenvio de seus "súditos"! A décima sinfonia que Beethoven teria criado!
"O significante é aquilo que representa o sujeito para outro significante" (Lacan). "Representante da representação" (Freud) exclusivamente do sujeito, significante para outro significante da História, da existência do sujeito. Psicanálise é clínica do sujeito. "O significante é unidade de ser único, não sendo pela sua natureza senão símbolo de uma ausência"... "A estrutura se define pela circulação do significante"... "Só o significante garante a coerência do conjunto como conjunto" (Lacan). "O significante de sua natureza antecipa sempre o sentido". O "enigma" freudiano passa ao algoritmo de Lacan, explosão e inversão do signo linguístico. Fórmula, matema do algoritmo do significante: S/s, significante, barra e significado; significado em stand-by à espera da ultrapassagem da resistência da barra para alcançar o sentido novo, original do sujeito: uma verdade. O signo é arbitrário, o significante é sobredeterminado.
Interpretar supõe uma relação terciária com o paciente. Essa relação é rigorosamente presidida pelo grande Outro, o lugar do simbólico, o garantidor do processo psicanalítico, como, aliás, de todo e qualquer entendimento. O Outro é o operador de verdade... Analista e analisante na perquirição da verdade.
Interpretar é um ato exclusivo em psicanálise. É um ato disruptivo. É a decifração de uma mensagem cifrada do inconsciente. É a revelação de uma verdade do sujeito. É um ato, não uma ação. Um ato que transforma o sujeito: "a experiência analítica" consiste em "reintegrar a relação subjetiva. É um ato "coextensivo à história do sujeito"... "É a retificação das relações do sujeito com o real" (Lacan): $ ◊ a $ a ! "E outra vez o mundo real, tão bondoso para os nervos (F. Pessoa).
E é isto que Freud e Lacan nomeiam castração. "O real é o racional e o racional é o real". A clínica da psicanálise é o real difícil ou impossível de ser suportado (Lacan). "O normal e o anormal" são consequência da castração. A psicanálise é arte de trabalhar a castração. "O complexo de castração não pode ser ignorado de nenhum pensamento sobre o sujeito" (Lacan). Toda e qualquer interpretação em psicanálise só será válida se ela operar uma castração.
Psicanálise é "a construção" (Freud), a reconstrução da existência de um sujeito humano... Freud usa a metáfora da arqueologia, a da escrita mágica ou da dessalinização do Zuydersee. "Uma obra de civilização", é voltar "a sublimar", diz ele.
Interpretar em psicanálise é a arte de transformar uma palavra chocha, vazia, em palavra cheia, plena da história do/a paciente. "Id fala, onde o vivido, longe de separar se comunica, onde a verdade libera sua estrutura verdadeira, aquela em que o que se analisa é idêntico àquilo que se articula" (Lacan).
Psicanalisar é uma prática clínica de imensa responsabilidade, mas quando exercida na busca exclusiva da verdade do sujeito, na eliminação de seus núcleos patógenos, na retificação daquilo que tolhe seu voo sublimatório, ela é imensamente gratificante, realizante para analista e analisando. É simplesmente uma "obra de arte" (F. Pessoa).
Todas as manifestações do inconsciente têm seu valor. O sonho, porém, tem valor especial por ser a "válvula de escape" do cérebro, do inconsciente. A análise o valoriza de maneira especial: uma narrativa que manifesta um registro do inconsciente. Interpretar sonho é uma habilidade clínica de grande valor. Toda e qualquer interpretação será sempre e estritamente em relação direta com a facticidade do/a sonhante. O caminhar da análise depende sobretudo da interpretação dos sonhos. O sonho é a manifestação dos significantes que registram a estrutura do inconsciente. Os sonhos nos revelam como ao longo da vida do paciente o cérebro foi registrando seu histórico. Na medida em que a análise avança os sonhos vão diminuindo e se sofisticando. Limpeza do inconsciente, conquista da subjetividade. E a verdade é: "o sonho é o caminho real do inconsciente". O sonho exige uma habilidade especial do/a psicanalista.
Reconstruir uma vida, eis o fim da análise. Descobrir a causa ou as causas dos sofrimentos neuróticos recalcados, ou, mais ainda restituir a saúde mental de um louco e ele poder voltar à vida normal de criar, inventar, sublimar é uma aventura apaixonante.
A psicanálise é a única ciência e clínica que oferecem solução para a chamada doença mental. Recalque (Verdrängung) e mais ainda foraclusão (Verwerfung) constituem caminhos iluminantes para os males da alma humana. Graças a Freud mais ainda a Lacan, a desrazão tem uma razão. O delírio, a paranoia e a alucinação têm um sentido, são frutos, sintomas, do histórico, da existência do paciente. A loucura finalmente pode ser escutada.
Além disso, a psicanálise, hoje, está bem atenta em "decifrar" (Lacan) marcos epigenéticos, as doenças autoimunes e as doenças epistemossomáticas.
A psiquiatria continua a descrever sintomas e a medicá-los. Sempre me é difícil entender ou mesmo encaixar o objeto da medicina – o bioanatomofisiopatológico – no sofrimento psíquico. O psiquiatra tem dificuldade de escutar o paciente. E a OMS a advertir que quatro em dez pacientes morrem por erro médico. Ela orienta: "médicos, ouçam seus pacientes". Entre o psiquiatra e os pacientes um escudo, um diagnóstico, uma etiqueta e um psicotrópico que vai intervir no corpo, no sistema nervoso, nas sinapses e deixa a patologia da alma intacta. Contaminação fisiológica, contaminação dos rios, dependência/vício, cronificação... E nem sequer uma escuta, uma palavra que acolha a dor, que recoloque e redirecione a existência do paciente!
E a demissão senão a rendição maior: nada de psicopatologia: "transtorno" para o gozo e lucro das multifarmacológicas. Medicar comportamentos! Transtorno não é doença: transtorno do tempo, das tempestades, do trânsito, da internet... simplesmente não há vida cotidiana sem eles!
A psicologia não passa do comportamento. A psicanálise vai a fundo, à linguagem que mantém o paciente amarrado em sua "dor de existir", mergulha no seu histórico, busca a causa. A psiquiatria trabalha com classificação das doenças mentais, nomenclatura, nosografia. A psicanálise institui uma nosologia, a verdade manifestada na história do paciente. A doença não é um ente. Doente é o sujeito.
"Assim, a resposta à dor psíquica não é buscada pela via da palavra, mas pelo consumo abusivo dos psicofármacos que prometem adicionar a substância faltante ao psiquismo deficitário. O remédio "age" em lugar do sujeito, que não se vê responsável por seu desejo e por suas escolhas" (Kehl, M. R.).
Enfim o/a analista
Freud, sobretudo em "Conselhos aos médicos" expõe alguns princípios sobre a questão da formação de analista e sobre a atuação da escuta analítica. Além da regra fundamental da associação livre, que vale para analista e paciente, ele recomenda a regra da neutralidade e a da abstenção para a escuta ser integralmente voltada para o paciente. "O analista tem que ser como o espelho." (Freud): simplesmente acolher a imagem que chega.
Lacan aprofunda muito mais essas exigências. Ele afirma várias vezes em seus seminários que o ensino dele se destina à formação de analistas. No opúsculo TV ele explicita essa formação com muito rigor. Primeiro o aforisma insofismável: "o analista não se autoriza senão por ele mesmo". Nada mais verídico e real. Não é instituição, não é autodenominação, não é o "cartãozinho" de propaganda, não é a visibilidade midiática. A única coisa que garante analista é sua obra.
Lacan compara a função de analista com o santo, que, por favor e honestidade, não confundir com o religioso ou religião! Santo: "Aquele que zomba do gozo": aquele que não embarca nas "miragens do narcisismo", aquele que se despojou da visibilidade, da vaidade, do status. Analista é aquele que porta a experiência das manifestações do inconsciente, aquele que "porta a palavra". O/a analista tem o dever de ignorar o que ele/a sabe. "A verdade na
A psicanálise é uma episteme e uma clínica de imenso valor para o restabelecimento do sujeito doente em sua alma. É uma clínica de libertação do sujeito. Conquista da liberdade de sublimar. É conquista de uma satisfação, de uma alegria. É sentido de viver. "Outrar" (F. Pessoa). O sujeito não tem como escapar de sua história. Mas graças à psicanálise ele pode se livrar de ser vítima dela.
A cura em psicanálise não é "restitutio qua ante", "restituição como antes" é o caso da medicina. A cura em psicanálise ocorre apesar do/a psicanalista. É um ato com efeito a posteriori da intervenção da palavra do psicanalista. É, Freud avisou, uma das "três profissões impossíveis" (Freud).
A ferida da foraclusão vai continuar na alma do paciente. Ela é da estrutura subjetiva dele. Mas ela perdeu força. Sua memória pode voltar, mas o sujeito "curado" não se torna mais vítima do delírio ou da paranoia. Nessa possível "revisita" de sua facticidade ele até rirá desse retorno. "A palavra é irreversível tal é sua fatalidade" (Barthes).
Concluindo
"A experiência psicanalítica encontrou no homem o imperativo do verbo como a lei que o formou à sua imagem. Ela maneja a função poética da linguagem para dar a seu desejo sua mediação simbólica. Que ela os faça compreender enfim que é no dom da palavra que reside toda a realidade de seus efeitos: pois é pela via desse dom que toda realidade é vinda ao homem e por seu ato continuado que ele a mantem" (Lacan)...
"De todas aquelas que se propõe no século, a obra do psicanalista é talvez a mais alta porque ela aí opera como mediadora entre o homem do desassossego e o sujeito do saber absoluto. Eis porque ela exige uma longa acese subjetiva, e não será jamais interrompida, o fim da própria análise didática não sendo separável do engajamento do sujeito na sua prática" (Lacan).
Lacan, em 1948, numa antevisão impressionante sobre a barbárie de nossa civilização emitiu a seguinte análise: "A saber, é, para o dizer na gíria que responde às aproximações das necessidades subjetivas do homem, a ausência crescente de todas essas saturações do superego e do ideal de ego que são realizadas em toda sorte de formas orgânicas das sociedades tradicionais, formas que vão da intimidade cotidiana, às festas periódicas nas quais a comunidade se manifesta. Nós não as conhecemos mais senão sob os aspectos mais claramente degradados. Mais ainda, por abolir a polaridade cósmica do princípio macho e fêmea, nossa sociedade conhece todas as incidências psicológicas próprias ao fenômeno moderno dito luta de sexos. Comunidade imensa no limite entre a anarquia "democrática" das paixões e o desesperado nivelamento delas pelo "grão vespão alado" da tirania narcísea, é claro que a promoção do ego em nossa experiência acaba, conforme à concepção utilitarista do homem que a secunda, por realizar sempre mais para frente, o homem como indivíduo, isto é, num isolamento da alma sempre mais parente de sua derrelição original". E ele não conheceu o "homo digitalis"!!
Esse tempo chegou. E a psicanálise, clínica do sujeito, que atua no tempo do sujeito e no sujeito do tempo, está a postos para acolher a "dor de existir" deste tempo.
Nesse mundo em mutação, nesse mundo de pós-modernidade, mais ainda, de pós-verdade, de fake news, nesse mundo de "responsabilidade líquida", de "amor líquido", a psicanálise se apresenta ao "sujeito do desassossego" como um apoio, um instrumento de grande valor para ele encontrar o seu eixo e seu rumo. Desembaraçar-se dos obstáculos psíquicos que não pediu para ter, mas que manietam seus passos. Romper com o "ego ideal" atual tão avassalador e partir para um ideal de ego construtivo. Romper com o individualismo, o solipsismo, e a solidão do homem atual, sobretudo a do "homo digitalis", expandir seus dons em obra, ocupar seu lugar no mundo e na comunidade humana, na construção da casa comum, e, sobretudo, fazer seu Nome.